O Genocídio e o Governo Bolsonaro

Diretamente do tonel de vinho de São Roque onde, há quatro meses, se encontra em obsequioso retiro em resguardo do COVID-19, o poeta António Paixão nos enviou a seguinte crônica sobre um grupo de reflexão a respeito do eventual genocídio no governo Bolsonaro.

Por António Paixão,

com Durval de Noronha Goyos Júnior.

 

Completo o meu quarto mês de isolamento voluntário num tonel de vinho em São Roque, para resguardo da contaminação pelo vírus COVID-19. Confesso estar deprimido, não tanto pelo meio em que vivo: alentador, saudável, estimulante, higiênico, profilático e terapêutico, mas pelos crescentes desmandos do governo Jair Bolsonaro, este perigoso canalha fascista, que atingem ao povo brasileiro de uma maneira devastadora, afetando os seus direitos humanos e até mesmo a sua perspectiva de sobrevivência. Como a área jurídica é altamente especializada, quis convidar um jurista internacional para um diálogo comigo.

Recorri, para tal fim, como faço muitas vezes, ao grande jornalista, escritor e publicitário Ruy Nogueira, meu querido amigo, que circula mais do que prostituta em trottoir.  Nogueira propôs-se a trazer até a minha adega o importante internacionalista, o Prof. Dr. Durval Noronha, para um almoço, mas advertiu: “por mais que estes advogados bebam quantidades navegáveis de vinho, eles não se submetem à indignidade. Você terá que montar uma mesa ao lado do seu tonel, com toalha e guardanapos de linho, porcelana inglesa e talheres de prata portuguesa, com o timbre do Porto. Pode deixar que eu trago tudo, mas vou querer participar”. Foi assim que o cogitado diálogo se transformou num grupo de reflexão, de resto mais apropriado ao tema.

Feliz e aliviado, respondi: “muito obrigado, grande Amigo. Como faremos com a comida”? “Bem”, respondeu-me Ruy Nogueira, “o Noronha vai sempre ao Piselli. Ele é amigo do proprietário, o Juscelino Pereira, e do Pezão da Fiel, o melhor chef do Brasil. Naquele requintado templo da gastronomia italiana, são todos corintianos certificados, com carteirinha da torcida Gaviões da Fiel. Precisa mais? Pode deixar que eu providenciarei a refeição”. “Obrigado, Nogueira, eu então irei oferecer o vinho”, respondi.

“Mas você acha que um grande pentelho encravado, como o Noronha, vai tomar vinho de São Roque? Nem sonhando! Vou pedir-lhe que faça uma modesta contribuição à causa do diálogo humanístico e à reflexão inteligente doando duas dezenas de garrafas do espumante Franciacorta e do tinto Primitivo Terra Rossa de sua inesgotável adega pessoal. Ahahah”, observou o jornalista Nogueira.  “Pode marcar”, arrematei pensando “que grand coup”!

Na data combinada, exatamente no horário marcado, chegaram ao meu tonel o grande jornalista Ruy Nogueira e o preeminente Prof. Dr. Noronha, um poseur  vestido em Saville Row, que caminhava com toda solenidade e atitude blasé, precedido por uma proeminente barriga de grande juridicidade encimada, avec aplomb, por uma papada de dar inveja a Cicero. Eu mal havia me enxugado do vinho do tonel, encontrava-me ainda enrolado em minha felpuda toalha de banho nova, decorada com o glorioso distintivo do S. C. Corinthians Paulista mandada comprar na feira livre de São Roque, quando tive de saudá-los.

O Nogueira se fez acompanhar também de sua leal governanta, Dona Rosa, uma elegante senhora de particular distinção, para montar e servir a mesa. Jornalista chique é assim mesmo. Fresco. Fresquíssimo, no caso. Ahahah. Jornalista pobre, como eu, come pão amanhecido com manteiga, quando tem. Que desgraça! Quelle horreur! Como é injusto o mundo! No cardápio, havia um tartar de atum com ovas de salmão, de entrada; um medalhão de filé mignon ao molho de trufas com berinjela recheada de prato principal; e uma torta de maçã de sobremesa. Para cada um, observe-se. É assim que estes juristas adquirem a sua admirada grandiosidade gástrica!

Começando a conversa, observei que maior parte das ações nefastas da administração brasileira de Bolsonaro já havia sido anunciada anteriormente às eleições presidenciais de 2018. Dentre elas é de se elencar a eliminação de direitos trabalhistas básicos, o desrespeito aos direitos humanos em geral, mas particularmente os das mulheres, dos negros, dos índios e da população LGBT, o desmonte da ação social do Estado, nela incluída a saúde e a educação; o desrespeito ao meio-ambiente; e o alinhamento automático à política exterior dos EUA, inclusive na questão climática. Toda esta diabólica plataforma foi apresentada à população da forma mais rude, grosseira e superficial possível.

Assim, não é de surpreender que tais propostas tenham sido imediatamente implementadas pelos agentes governamentais encarregados e que tenham sido repudiadas vigorosamente pelos setores sociais responsáveis. Todavia, na medida em que segmentos da sociedade, incluindo a imprensa, se insurgiram contra tais ações nefastas e as criticaram, passaram eles a ser atacados pelo governo e seus agentes, oficiais e oficiosos. Dentre esses últimos, contam-se tanto as milícias armadas como as midiáticas, instrumentais ao projeto fascista. Assim, mesmo os outros Poderes, Legislativo e Judiciário, vieram a ser fustigados pelo Executivo, que não apenas prometeu publicamente fechar as referidas instituições, como conclamou o apoio de seus seguidores para tanto.

A crise institucional agravou-se com o descalabro da política econômica do Governo Bolsonaro, que privilegia o setor capitalista rentista, em detrimento da economia real, incluindo a situação do trabalhador. Quando a pandemia do COVID-19 atingiu o Brasil com grande força, na primeira quinzena de março de 2020, o governo fascista, na pessoa de seu presidente, seguindo a liderança irresponsável de Donald Trump, declarou que não havia ameaça à saúde pública. Mais ainda, insurgiu-se contra o respeitável organismo multilateral, a Organização Mundial da Saúde (OMS), do qual o Brasil faz parte, e suas recomendações. Segundo o presidente fascista, o tempo apenas resolveria a questão, como nas demais gripes.

Com fundamento nesta posição irresponsável, o governo federal brasileiro deixou de equipar o sistema de saúde público para atender as vítimas da pandemia e a promover o uso de medicamentos ineficazes não provados cientificamente, fabricados por apoiadores financeiros da campanha presidencial. Passados mais de 4 meses, a população brasileira ainda não foi testada contra o vírus; o uso de máscaras foi desencorajado; o isolamento social foi duramente criticado; os agentes de saúde não foram equipados com meios de proteção pessoal; houve falta de álcool e de máscaras nas primeiras semanas; equipamentos hospitalares essenciais, como respiradores, deixaram de ser fornecidos; o contágio público foi encorajado; e até mesmo a morte foi banalizada. Mais que um assombro, trata-se de uma situação horrorosa, com graves repercussões no âmbito dos direitos humanos fundamentais.

Cerca de 20 milhões de pessoas foram infectadas no Brasil, segundo estimativas responsáveis, devido à falta de credibilidade das estatísticas oficiais. Aproximadamente 80 mil pessoas morreram até o dia 14 de julho de 2020. Instaurou-se a fome no País, decorrente da crise econômica e, consequente desemprego, exacerbados pela pandemia. O governo, conforme declaração do ministro do meio ambiente, então optou por dar maior profundidade, amplitude e celeridade à destruição sistemática das florestas nativas, aproveitando o momento de suposta desatenção da imprensa, que estaria mais preocupada com a pandemia.

Com o encorajamento oficial público, deu-se um tanto radical quanto amplo desmatamento, sem precedentes históricos, na região amazônica pelo setor privado, certo da impunidade, não obstante a existência de legislação protetiva. Como resultado da destruição das florestas e do envenenamento dos rios por minerais pesados, em consequência da mineração, eliminou-se o meio de vida de largos segmentos de populações indígenas, situação que foi agravada com a chegada do vírus às aldeias nativas e pela ausência de meios de atendimento.

Com o objetivo de assegurar uma postura ideológica do Ministério da Saúde, foi este, sem ministro, desprovido de médicos e equipado com muitos militares proveniente em sua maioria do Exército, comandados por um general da ativa, os quais se juntaram aos milhares alocados ao Poder Executivo. O presidente assim se certificou de disciplina cega no cumprimento de suas disparatadas e criminosas ordens. A reação da opinião pública brasileira e internacional não demorou e foi impulsionada por declaração de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte brasileira, o qual denunciou “estar o Exército associado a um genocídio”.

Neste ponto específico de minha introdução, o Prof. Noronha interveio para afirmar que “ao expressar tal opinião, o ministro Gilmar Mendes, na realidade, passou dois juízos de valor: o primeiro, de que um genocídio por parte de indivíduos ligados ao governo brasileiro está em andamento, possivelmente associado a terceiros; e, o segundo, que oficiais do Exército do Brasil são agentes associados a tal prática criminosa, sancionada pelo direito internacional de regência. Note-se ainda que o meio ambiente saudável passou a ser considerado, há tempos, como um direito humano. De fato, assiste razão ao ministro”.

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio foram aprovadas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1945, como primeiras ações na construção da ordem jurídica multilateral no pós-guerra. Como escrevi em meu livro O Novo Direito Internacional Público, usado pelos alunos de meus cursos de pós-graduação, ‘posteriormente, evolui-se na formulação do direito internacional, com um grande número de tratados’”…, continuou o jurista.

“A Convenção sobre o Genocídio, em seu artigo II, o define como a prática de certos atos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, como a morte de membros do grupo; o causar de danos físicos ou mentais a membros do grupo; impor condições de vida tais ao grupo que visem causar sua destruição física, total ou parcial; impor condições impeditivas de procriação no grupo; ou transferir crianças de um grupo para outro”.

“Por sua vez”, prosseguiu o Prof. Noronha, “a abrangência do crime de genocídio, de acordo com o artigo III, passou a compreender não apenas o genocídio em si, mas também a conspiração para cometer genocídio; a incitação à prática de genocídio; a tentativa de cometer genocídio; e a cumplicidade com a prática criminosa. Os indivíduos responsáveis, quer sejam governantes, agentes públicos ou pessoas naturais do setor privado responderão pelos atos criminosos. Não obstante a importância da enunciação, a Convenção sobre o Genocídio omitiu-se de sancionar a prática criminosa,  deixando a matéria como competência para o direito interno, ou municipal, dos países signatários, assim tornando na prática os seus princípios meramente enunciativos e exortativos”.

Depois de uma pausa para mais dois cálices de espumante, no que foi entusiástica e solidariamente acompanhado pelo jornalista Ruy Nogueira e por mim, o Noronha continuou: “tal omissão, contudo, foi suprida pelo Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), adotado em 17 de julho de 1998, e promulgado pelo Brasil em 2002, o qual ademais incluiu dentre os crimes sob sua jurisdição o genocídio, crimes contra a humanidade; crimes de guerra e o crime de agressão. O processo aplicável é exaustivamente detalhado no tratado. O Estatuto do TPI repete a definição de genocídio do tratado de 1948”.

“Infelizmente”, prosseguiu o Prof. Noronha, “os maiores violadores dos direitos humanitários reconhecidos internacionalmente, os Estados Unidos da América (EUA), não aprovaram o TPI, o que tira muito da eficácia do Tribunal. Não obstante, até hoje o TPI emitiu 35 ordens de prisão em desfavor de pessoas físicas, das quais 17 foram presas e responderam a processo, computando-se 8 condenadas, 4 absolvidas e 3 mortas durante os respectivos processos, sem que houvesse uma decisão definitiva a respeito da questão”.

Neste momento, interrompi a exposição para fazer a pergunta óbvia: “e neste quadro, como fica a situação denunciada pelo ministro Gilmar Mendes”?

Respondeu-me o Prof. Noronha que “A declaração do ministro do STF diz respeito claramente à existência de um genocídio dos indígenas, ação que seria de responsabilidade de agentes públicos brasileiros e, de maneira apenas indireta, à mortandade extraordinária resultante da pandemia do COVID-19. No primeiro caso, conjectura-se que o genocídio de índios possa ser atribuído ao presidente da República, ao seu ministro do meio-ambiente e a outros agentes governamentais e privados, com a permissão ou tolerância de oficiais públicos. No tocante à pandemia, pode-se alegar que sua desastrosa magnitude deu-se, em grande parte, por ação e omissão de agentes públicos brasileiros, a começar pelo próprio presidente da República e também por agentes públicos no Ministério da Saúde, comandado e operado largamente por oficiais do Exército brasileiro”.

Neste ponto, intercedeu o jornalista Ruy Nogueira, atento e sóbrio, como quase sempre, para perguntar: “então, em tese, poderão os agentes públicos brasileiros responder a ações criminais junto ao Tribunal Penal Internacional por ambos os fundamentos”?

“Sem dúvida”, respondeu o Dr. Noronha.

“E é provável que isso ocorra”?, perguntei em seguida.

Noronha apressou-se em responder: “Não é a  primeira vez que Bolsonaro é denunciado perante o TPI. Já em 2016, a gloriosa União Brasileira de Escritores (UBE), que eu tive a honra de presidir na ocasião, fez uma denúncia ao Tribunal baseada na apologia à tortura, feita pelo então deputado federal Jair Bolsonaro. Se tivesse prosperado, talvez a história hoje seria certamente outra. Mais recentemente, foi feita uma outra denúncia por uma associação de juristas, da qual não se tem notícia se foi aceita ou não. A denúncia de um ministro do STF, da estatura do Gilmar Mendes, no entanto, tem um poderio muito contundente e tudo pode acontecer”.

Curioso e não satisfeito, insisti com meu cinismo habitual: “e pode também não dar em nada”?

“Já aconteceu”, finalizou o Professor Noronha laconicamente, atacando o seu tartar de atum, não sem antes beber meia garrafa do Franciacorta, no que foi imediatamente acompanhado pelo jornalista Ruy Nogueira.

“Que sede”!