O poeta vira estautua no Bixiga

Novo conto do poeta António Paixão.

Eu acordei no horário habitual naquela terça-feira, dia 1º de agosto, data nacional da Suíça, o país dos chocolates, dos relógios e da sem-vergonhice. É também a data do aniversário da comadre Clarice. Eram seis e meia (da tarde), mais ou menos, porque no Bixiga, como cantou o grande Adoniran Barbosa, “as hora vareia”. Apressei-me para sair de casa antes que retornasse minha mulher, a abundante, voluptuosa e licenciosa Giggi Dell’Amore, de seu trabalho na sorveteria do bairro, além de outros afazeres, prazerosos ou não. Estava já ansioso para tomar o meu vinho da manhã e selecionei o sacrossanto Botecão 13, na Rua 13 de maio, onde uma animada roda de samba estava naquele momento para começar a rolar.

Sentei-me ao lado de minha mesa costumeira, de frente para a porta, para que pudesse ser visto. Afinal, eu não sou mafioso, camorrista nem bolsonarista, para me sentar com as costas contra a parede. Perguntei ao Diógenes se o Meretríssimo havia deixado para trás o seu exemplar de O Careta de S.P., aquele inidôneo jornal golpista e propagador de notícias falsas de interesse dos rentistas, de seus patrões imperialistas e dos agentes da destruição ambiental. O Meretríssimo era um juiz aposentado, o qual nos seus anos do Foro João Mendes Júnior adquirira merecidamente a infâmia de corrupto, embora não exclusiva.

O Meretríssimo foi o único magistrado aposentado de que se tem notícia a ter optado pela residência fixa no Bixiga, porque os de sua classe normalmente moram, em sua maioria, na chamada zona baixa dos Jardins, nas proximidades das lojas de grife e dos restaurantes de preços abusivos, frequentados por descompostos, onde se come mal, ao contrário dos celestes comedores do Bixiga. Nos restaurantes dos nababos, não há lugar para a harmonia melodiosa do samba, mas apenas para a poluição sonora do estrupício de procedência forânea, com marcada inspiração gringa.

Na realidade, o Meretríssimo optou pelo bairro porque ali, naquele meio tolerante, se sentia mais à vontade para representar o seu alter ego transexual, como a drag queen ‘Barbie dos Tribunais’. Essa se apresentava pelas ruas, praças avenidas, esquinas, bares, botecos e demais logradouros do Bixiga intensamente maquilada, de peruca loira Channel, roupas cor de rosa e sapatos Louboutin com saltos estilete de 15 centímetros, para além dos imodestos enchimentos vários na parte frontal superior e também naquela traseira, à altura das nádegas. O resultado final gerava um choque rosa, ou rosa choque, como queiram.

Depositado o aborrível, nefando e pernicioso periódico sobre a minha mesa, abri-o com o polegar e indicador da mão direita, enquanto usava os mesmos dedos da mão esquerda para tapar as narinas, de forma a não me incomodar demasiadamente com a fétida catinga fecal. Para minha revolta, logo li que o tétrico Tarcísio Tenebroso decretou a abolição do livro nas escolas públicas paulistas. Não que eu tenha me surpreendido. Afinal, é essa a panca de miliciano dos homens de sua sórdida laia. Quelle horreur, teriam certamente dito George Sand e Oscar Wilde, como também Voltaire.

Bebi logo mais um copo do meu vinho de São Roque, para afastar os maus espíritos e restaurar minha sanidade mental, e pedi ao Diógenes que removesse o debochado pasquim de especiosa sobriedade e singular fedência de minha frente. “Para a lata de lixo”, recomendei enfaticamente, enquanto desinfetava os dedos da mão direita. Foi quando ele, que se expressava por parábolas e simbolismos como o seu homônimo, o filósofo grego, Diógenes de Sínope, mas à maneira alagoana, disse-me com ares enigmáticos: “temos diante do templo uma comissão da assembleia do povo, cujos vozeiros, sambistas ou não, desejam uma audiência consigo, Oxente”.

“Que entrem”, respondi imediatamente, “mas saibam todas, desde logo, ser o meu vinho insuficiente até mesmo para atender as minhas modestas necessidades matutinas”. “Boa noite”, disse-me a senhora dirigente, a professora Jussara Tamanduá, da rede pública paulistana, um tanto quanto equivocada com relação ao horário. Foi quando eu respondi solenemente, como exigia a ocasião: “bom dia, condutoras do meu querido Bixiga, o bastião máximo da cultura paulista e brasileira. A nação está intimamente unida ao país pela cultura: ela o possui; o povo está no país: ele o habita”.

Para meu pasmo, o grupo de notáveis incluía a ilustre jornalista Sueli Scutti, tradicional residente do Bixiga; o celebrado cantor napolitano Sergio De Rosa; o consagrado poeta Adalberto da Rego Freitas; o sambista Gustavo Agá da Mancha Verde; o Frei Totò Molisano O.P., que é conhecido como piedoso pároco das descompostas e decaídas; a competente relações públicas Patrícia Ribeiro; o eloquente publicitário, Ruy Nogueira, que trazia um embornal da Gaviões da Fiel, a denotar muito uso, com 2 pinturas de Fulvio Pennacchi “ambas de boa procedência”; a cabeleireira Joaquina, conhecida por Vitória da Fofoca; e o grande maestro Emanuel Pimenta, vindo de Portugal para um concerto, estando de passagem pelo bairro com o fito de comprar o pão da centenária Basilicata, o melhor do mundo.

“Poeta, admirado Bardo do Bixiga”, continuou a professora Jussara Tamanduá, na qualidade de representante popular, “precisamos dos seus préstimos para ajudar a Bela Vista, ameaçada que está pela voracidade capitalista do ramo imobiliário e pelo criminoso descaso doloso das autoridades. Até os nossos teatros querem destruir! Precisamos do Parque do Bixiga! Gostaríamos de nos valer de sua fama de laureado pelo invejado prêmio Ig-nóbil, em Portugal, além do reconhecimento no meio da Fiel Torcida e em nosso amado bairro. É para o bem público e bem-estar da nação”.

“Querida condutora, ‘decadentes, minha cara, decadentes é o que nós somos’, como escreveu o inigualável Fernando Pessoa, um poeta que bem conhecia a natureza humana”, respondi. “Todavia, em minha humilde posição de poeta”, continuei “infelizmente, há muito pouco o que eu possa fazer, apesar de toda a minha boa vontade, mesmo nos raros momentos de sobriedade. Porém, é conhecido o meu amor pelo bairro, por seu povo e também aquele da Gaviões da Fiel. Ademais, sou eu um homem de cultura lírica, teatral e enológica, mas não necessariamente nesta ordem”.

“Sim”, logo retrucou a popular dirigente comunitária, “mas precisamos aumentar em muito o número de turistas no Bixiga e a simpatia pela causa do povo, que é aquela de Deus. No próximo dia 5 de agosto, teremos o início da formidável Festa de N.S. da Achiropita, a qual tomará lugar durante mais de 1 mês, com as tradicionais delícias da cozinha italiana, incluindo a melhor macarronada do mundo e a deliciosa linguiça calabresa. Toda a renda do evento centenário reverterá para as nobres causas assistenciais da comunidade”.

“Eu sei. Sou um frequentador. Minha mulher, a transbordante Giggi Dell’Amore, irá servir os deliciosos sorvetes de sua fabricação própria, por cima de seus mui admirados melões rosados. De minha parte, eu me limito a algumas poucas garrafas de vinho, apenas parcimoniosas 6 ou 7, e a 1 pequeno pedaço de focaccia. Afinal, tenho que dar bom exemplo para as crianças que adoram frequentar a festa, num ambiente religioso, folclórico e multicultural rico, seguro e familiar”. “Todos nós sabemos de seu histórico, Bardo, mas precisamos de algo mais incisivo para atrair e sensibilizar as multidões”.
“Devido à sua grande fama internacional, como Bardo do Bixiga, Trovador da Gaviões da Fiel e Vate do Timão”, continuou a professora Jussara Tamanduá, “nós gostaríamos de lhe apresentar como um monumento vivo na Praça Dom Orione, diretamente em frente ao coreto e próximo à estátua do grande músico Adoniram Barbosa, de saudosa e celebrada memória”. Interrompi a professora Jussara Tamanduá: “Ali onde é realizada a famosa feira de antiguidades aos domingos”? “Sim”, continuou ela, “com o devido respeito, o Poeta será a nossa ruína histórica, como aquelas de Roma, ainda que felizmente vivo, ao menos por enquanto. Imagine só a nota publicitária: ‘António Paixão, o deslumbrante Coliseu finório do Bixiga, em pessoa’. Chique, chique, não”?

“Uma estautua, como teria dito Adoniran Barbosa? Fico penhorado pela calorosa homenagem à minha gloriosa ruína pessoal. Eu mereço. Sinto-me bastante lisonjeado. Espero que esteja totalmente à altura. Poderei fazê-lo e até mesmo declamar alguns de meus celebrados versos. Isso se for a vossa vontade aqui na terra, como o é certamente no Céu, desde que modestamente abastecido por 12 garrafas do bom vinho português do Douro, que me darão combustível para 120 minutos da melhor poesia, após o que deverei encerrar a sessão”. “Que alegria”, respondeu-me ela e acrescentou: “o Bixiga e o seu povo agradecem”.

“Em contrapartida”, continuou, “o Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai irá lhe disponibilizar um carro alegórico para o próximo carnaval, com os motivos e decorações referentes a Baco, quantidades navegáveis do bom vinho tinto do Douro, acompanhado de belas e exuberantes bacantes, com muita graça, ampla desenvoltura e pouca roupa”. “Muito obrigado, professora e admiradoras”, respondi. “Fico bastante feliz. Eu mereço. Mas veja com que os pombos homenageiem o busto do Adoniran Barbosa e não a ruinosa estautua viva do Bixiga. Recomendo ainda que gentilmente afastem de mim os meus amigos cães, porque não quero ficar com as pernas molhadas”.

Poeta bão é o António Paixão, Bardo do Bixiga, Trovador da Gaviões da Fiel e Vate do Timão.